Entre o não e o sim

Ativistas pela descriminalização do aborto no Uruguai fazem manifestação na entrada do Congresso. Foto: Miguel Rojo / AFP.

Não! – é o berro silencioso (ou seria silenciado?) que muitas mulheres vociferam ao descobrirem a sua gravidez oriunda de um abuso sexual ou de uma relação sexual sem camisinha, porque o parceiro (e até ela mesma) gostaria de sentir mais prazer.

Quando sentar, tem que cruzar a perna. Não pode usar saia muito curta, pois se alguma coisa acontecer você, mulher, independente da sua cor, credo, idade ou classe social, será culpada e não vitima. Cantada na rua? Ah! Pelo menos eles te acham bonita. Não se esqueça de que a sua cor predominante é rosa, azul é coisa de menino. Não, você não pode ganhar brinquedos de montar ou carrinhos, lembra? Isso é coisa de menino. Fica aqui com a sua cozinha completa em miniatura. Sua axila e sua vagina, suas pernas e seu buço terão pelos, mas sabe o que é, você tem que tirá-los frequentemente por questões de higiene. Ah! Mas o cabelo, não o corta igual de homem, irão te chamar de sapatão. Tem uns comprimidos que você precisa tomar, todo dia, para não engravidar, ok?

Não! É impossível responder a pergunta “você já se deparou com alguma das frases acima?” com um não. O não também cansa. Cansou grupos de mulheres que decidiram gritar nãos para conseguir sins. O corpo é de cada uma, e cada uma pode decidir por ele. Diferenças existem sim, direitos também e não é gênero, raça, cor, religião e estereótipo corporal que decidirá quem pode e quem não. Na verdade, nem a Constituição muitas vezes garante isso, uma parcela é deixada de lado, vez ou sempre.

Não, não é mais aceitável o silêncio. Não é aceitável mais coisas absurdas. Não é aceitável mais a brutalidade que muitas mulheres ficam submetidas quando devem decidir ter ou não um filho. Isso é saúde, educação, crenças, um monte de fatores intercruzados e construídos socialmente que ditam regras, muitas vezes não entendidas e/ou percebidas, que gera sofrimento.

Talvez seja necessário aqui assumir uma posição a favor ou contra o aborto, e eu assumo que sou a favor de uma regulamentação dessa prática. Levando em consideração o direito a vida, sim. Levando em consideração todo o contexto que a mulher, enquanto dona de si e atora social, está inserida. É preciso questionar: em que condições o nascituro foi gerado? Qual a vontade da mulher? Quais os direitos que estão sendo colocado em cena e aqueles que permanecem atrás do palco?

Desde os anos 60 até hoje grupos feministas têm como pauta a descriminalização do aborto. O corpo é nosso, mulheres, e podemos dizer não diante das situações. O corpo é nosso, e podemos lutar por esse direito, sempre. O corpo é nosso, e não podemos ficar trancafiadas nas redes sociais e nos espaços acadêmicos, de certa forma tão restritos, teorizando ou mantendo na superfície essa discussão.

Sim, a nossa sociedade é heteronormativa. Sim, isso é tão naturalizado que não percebemos. Periferia ou centro, essa discussão precisa sair dos espaços institucionais e virtuais e ganhar, cada vez mais, a cidade, o povo que acha ok discursos e lógicas que aprisionam, ou que não conseguem perceber outras lógicas. É preciso ganhar espaços para romper e, principalmente, tencionar os discursos naturalizados, que nos cerceiam e nos dizem não a cada escolha de roupa.

O corpo é meu e a escolha também. Questione entre o sim e o não, e então escolha por você, com você e pelas trocas possíveis em meio ao contexto micro e macro no qual está inserida.

Entenda, então, que talvez não se trate “só” de descriminalização do aborto, se trata de tramas tão dramáticas e sutis que é preciso um respirar fundo e ir, entre o não e o sim.


Texto escrito, originalmente, para a disciplina “Seminário em Psicologia Social: Democracia, Estado Laico e Novos Movimentos Sociais” do Curso de Psicologia da UFRGS,  ofertada pela Profa. Dra. Neuza Maria de Fátima Gureschi e acompanhada por seus estagiários docentes Wanderson Vilton Nunes (doutorando) e Rodrigo Kreher (mestrando). Esse texto (aqui, com algumas alterações em relação ao original) foi uma proposta de atividade para pensar, em aula, sobre a questão da legalização do aborto. Os textos abaixo foram utilizados como provocação de escrita:

–  A Contribuição dos Movimentos Sociais Feministas e a Política Pública Nacional de Atenção às Mulheres em situação de abortamento – Mariana Diôgo de Lima Costa, Alba Jean Batista Viana e Eduardo Sérgio Soares Sousa.

Políticas feministas do aborto – Lucila Scavone.

Estatuto do Nascituro.

Estatuto da Família.

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